terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Conto de macho

Grande sujeito o Freitas. Colega inexpugnável. O melhor digitador do escritório. Um devorador implacável de filmes antigos e pasteizinhos de queijo. Morava próximo do centro, dividindo o apartamento com seus dois jabutis de estimação. Gostava de animais, o Freitas. Sabe como é, depois dos trinta a gente começa a olhar as coisas com outro ângulo. Há quem achasse aqueles dois jabutis andando pelo apartamento algo um tanto exótico. Já o Freitas não ligava.

Conversava sobre quase tudo: política, carros, futebol, a nova do Simão, a última do Veríssimo. Ah, o Freitas. Somente num assunto o Freitas derrapava: mulher. Não que não gostasse da coisa; o problema era que o Freitas havia tido umas experiências meio desagradáveis nesse campo.

Não entendia direito as mulheres. Achava que algo estava errado com elas. Há uns meses começou a sair com uma delgada psicóloga, faixa dos trinta, boa de papo que só vendo. Para o Freitas, que já estava beirando os trinta e cinco, era um senhor partido, daqueles de pegar na mão, estufar o peito e correr pro abraço. Entretanto, ela tinha três qualidades temerosas: era independente, bem sucedida e bem resolvida.

Não que para o Freitas isso fosse uma surpresa, já ouvia falar dos novos clamores femininos fazia tempo. Só não esperava ter uma assim na frente. Fora pego de surpresa. Não havia se preparado para uma mulher daquelas. Uma cabeça genial acompanhada de um sorriso embasbacante e o par de pernas mais estupendo que já tinha visto.

O Freitas descobria que a tal “revolução feminina” não se baseava mais em pílulas, mini saias ou biquínis asa delta. De repente se viu diante de uma pessoa incrivelmente segura de si, sem débitos nem créditos com ninguém. “Aquilo não, já era demais”, pensava.

Estava incomodado. E impotente. Os amigos começaram a estranhar: estaria o Freitas sofrendo por uma mulher? Pobre Freitas, apanhando dos novos tempos. Ela ainda, irrefutável, deixava bem claro: detestava jabutis.

A coisa não demorou a acabar. A psicóloga se foi, num tour de dois meses pela África. Ao Freitas, restou amargar os desvarios do fim de namoro como todo bom macho: trancado no apartamento, na companhia de uma garrafa de uísque, dois jabutis e uma penca de discos do Osvaldo Montenegro.

Carolina

Decisões para ela sempre foram difíceis. Pequenas ou grandes escolhas lhe suavam a testa. Na infância tinha sérias dúvidas entre o picolé sabor abacaxi ou groselha; na adolescência, ficava por horas e horas entre o bom e velho sapato fechado ou o incendiário salto alto; um pouco depois, por volta dos dezoito, passou algumas noites pensando na faculdade que iria escolher pra vida. Não que fosse alguém sem eira nem beira; apenas não sabia lidar direito com tomadas de decisões.

Entre picolés, sapatos e os anos da faculdade, chegou aos quase-trinta sem namorado, “encalhada”, como diziam as amigas mais chegadas, e as menos também. Lembrava-se de sua mãe: “é muito indecisa, menina! Imagine quando casar!”

Casar? Não, a mãe só podia estar brincando com uma dose de sadismo cáustico. Quantas amigas, colegas do trabalho, todas, sem exceção, naquela corrida contra o tempo, esperando pelo tão sonhado príncipe, ou até, caso ele não surgisse, que fosse ao menos um plebeu com potencial.

Às vezes pensava no que seria o casamento. Um contrato conjugal de fidelidade, com termos e condições pré-fixadas? Ou um comercial de margarina, eterno enquanto durasse? Cautelosa, mantinha-se alheia a estas celeumas. Algumas vezes, escutava algumas histórias.

Numa delas, ficou sabendo que a quase-assistente da direção havia encontrado seu príncipe. Com direito a cavalo branco e tudo. Logo em seguida, aos prantos na sala de fotocópias, revelou que passados alguns meses de convivência num apêzinho quarto-sala, descobriu que o príncipe havia se transformado num acomodado sapo. Ele partira, deixando o cavalo branco, ou melhor, aquele pangaré, instalado no apartamento, com os excrementos espalhados pelo tapete da sala.

Diante dessas e outras ululantes histórias, tomou pela primeira vez uma firme decisão. Não se preocuparia com assuntos matrimoniais. Deixaria se levar pelas indas e vindas, e que o destino, aquele gozador, se encarregasse do resto. Passaria pelos quase-trinta e chegaria aos quase-quarenta se fosse preciso sem esquentar a cabeça com príncipes, cavalos e outras balelices do gênero.

Não iria embarcar na onda do matrimônio por atacado, se é que sabia direito o que isso queria dizer. Sua mãe, nessas horas, já perdia as esperanças. “Também, já viu aqueles sapatos? Estão horríveis!” desabafava.

Adorava cafés. Nas noites de terça ficava por horas numa cafeteria ao lado de casa, sentada num banquinho à meia luz, invariavelmente na companhia de um livro. Apareceu por lá numa noite de quinta, coisa que não tinha muito hábito. Trazia um livro de Neruda. Sentou-se no lugar costumeiro, e entre um latte e um irish coffee (maldita indecisão!) pediu o invariável expresso.

Notou a frente um fortuito sorriso. Na sua direção. Usava óculos retos, quase-caindo no nariz e lia Residencia en la tierra. Era um pouco mais alto que ela, tinha cabelos quase-pretos, quase-brancos. Usava sapatos marrons e tinha por volta de trinta e oito. O sorriso ainda estava lá, teimoso. Sentiu o suor escorrer na testa.

Por um instante hesitou, mas retribuiu o sorriso.

Estão juntos até hoje. Trocou o nome de solteira e até os sapatos.