quarta-feira, 28 de julho de 2010

Uma crônica para Dona Gilda

Durante um tempo morei com Dona Gilda. O anúncio do aluguel estava lá, a precinho de ocasião, e resolvi sair do aperto de um sobrado de dois dormitórios, que dividia com outras sete pessoas, para me aboletar num quartinho de empregada de um metro e poucos por um metro e poucos, num pequeno apartamento próximo à Estação da Luz. Não me recordo muito bem agora, mas acho que se o Nelson Ned resolvesse passar uma temporada por lá, iria reclamar que lhe faltava espaço para guardar as alpargatas.


Recordo-me bem é da Dona Gilda. Sua idade até hoje me parece algo indecifrável, tão indecifrável quanto aquelas estranhas sobrancelhas arqueadas, rigidamente dispostas sobre os dois pequenos olhos azuis. Nos seus autos depois revelados, constava que havia chego à capital paulista ainda nos anos 60, talvez quando Caetano, Gil e outros velhos baianos saracoteavam pelo cruzamento da Ipiranga com a São João.

Sempre tivera o hábito de alugar quartos para rapazes e, durante minha estadia, me colocava sob um tratamento quase militar, que faria um general da antiga Esparta corar de inveja. Apesar da rigidez protocolar em seu lar, Dona Gilda era amável. Servia-me um cafezinho toda a manhã, enquanto ouvia canções religiosas vestida num pijamão de flanela roxo e chinelas felpudas nos pés.

Ah, que saudades da Dona Gilda.

Como boa aposentada pelo INPS, Dona Gilda gostava de falar sobre três assuntos: o preço dos remédios, o preço dos tomates e o preço dos alugueis. Às vezes, mudava a retórica: falava da quantidade de remédios que era obrigada a tomar, da quantidade de doenças que poderíamos pegar e da quantidade de pessoas na rua que poderiam nos assaltar. Se Dona Gilda tivesse nascido na antiga Grécia, não ia ter pra ninguém na dialética.

Dona Gilda estava na ocupação errada. Deveria ser Ministra da Saúde ou do Bem-Estar Social. Os canadenses e os franceses iriam morrer de inveja. Ainda bem que Dona Gilda não falava francês. Uma pena que Dona Gilda não falava grego.

Dona Gilda tinha o sono leve. Portas, janelas e pacotes de biscoito deviam ser abertos com discrição. Mas nada era comparável à descarga. Maldita descarga. Sua cartilha era clara: a descarga deveria ser apertada com - ui! - carinho e delicadeza, para não promover estardalhaços desnecessários no meio da noite. Mas, no sagrado momento de encontro ao vaso sanitário, quando nossos anseios mais profundos eram libertos da clausura do expediente diário, a descarga se mostrava lá, desafiadora. E quanto aos nossos anseios, apesar de dispostos a tomar o curso dos acontecimentos e desaparecerem esgoto abaixo, ficavam sempre à mercê dos caprichos da barulhosa. Certa noite tive a impressão de nela ver estampado o rosto de Dona Gilda. Aquelas sobrancelhas arqueadas não me deixavam dúvida.

Mas como tudo passa e tudo passará, minha estadia com Dona Gilda terminou logo. Faltava-me espaço não só para as alpargatas, como também para outras mil tranqueiras que costumo guardar. Hoje ocupo um quarto mais espaçoso. E com descargas liberadas toda a noite.

Mesmo assim, ah, que saudades da Dona Gilda.

sábado, 22 de maio de 2010

Abobrinhas

A cabeçadurice é contagiosa.
Metro_SP

terça-feira, 18 de maio de 2010

Realidades

Moro atualmente na capital paulista, vizinho à Estação da Luz, na região da Cracolândia. Do décimo andar do prédio onde moro, posso ter tristes impressões sobre a fragilidade humana. Por aquelas ruas, dezenas, talvez centenas de pessoas, travestidas de farrapos humanos amparados pelo desespero, amontoam-se nas esquinas alaranjadas. A pedra aquecida, tragada aos poucos, parece-lhes injetar um sopro de vida mórbida.

Os olhos vazios, petrificados, dão-lhes a aparência de zumbis.

Não era o que eu via há um ano. Sob o céu azul e a vida na cidade do interior, outro rapaz tentava dar sentido ao seu caminho. Por mais que parecesse uma ideia desafiadora, tomar a decisão de abandonar o aconchego materno era uma tarefa penosa. Entretanto, mais cedo ou mais tarde chegaria a hora. E cá estou. De certa forma, acredito que todos deveriam ter, ao menos uma vez na vida, a oportunidade de saírem da cadeira do comodismo e terem um choque com a realidade.

Realidade em certos momentos ríspida, mas que em outros nos promove, com profunda sinceridade, boas histórias.

Conheci Orlando. Pernambucano de boa prosa radicado há 25 anos na cidade de São Paulo. Balconista de bar. Ao dizer a ele que aquela tarde estava “um calor da bexiga”, quis saber de onde eu havia tirado tal expressão. Tentei lhe esboçar algumas memórias, mas minha pequena e medíocre história não se comparava à dele.

Disse-me que quando chegara à capital paulista, trazia o sonho de todos que por aqui desembarcavam: ganhar a vida. Terra do trabalho, do dinheiro e das vicissitudes, São Paulo era o Eldorado prometido. Depois de três dias e duas noites num ônibus, vindo de Trucunhaém, no interior pernambucano, ancorava a vida na capital paulista.

Soube depois que Trucunhaém era movida pela cerâmica e pela cana de açúcar. Talvez Orlando não levasse jeito para modelar argila. Talvez não gostasse também da paisagem monótona do canavial. Com dezessete anos nas costas e um amigo já radicado na Xangrilá bandeirante, arredou o pé. Como ele mesmo me disse, “achava que São Paulo era uma espécie de ilusão”.

Os tempos passaram, e vinte e cinco anos depois, casado e com quatro filhos, Orlando não tem mais vontade de voltar. Mas apontou que algo muda atualmente por esses lados. Os migrantes estão voltando para sua terra. As condições de vida na região melhoraram; não há mais aqui o romântico encanto, a sedutora atração para almas aventureiras.

Ainda existe a São Paulo cinematográfica, dos campos, espaços e clichês. Ao sertanejo da Paraíba, de Pernambuco, da Bahia e do Brasil, Patativa do Assaré ainda declama seus versos, embalando a luta de um povo que alicerça, com concreto, suor e saudade, o desígnio de uma metrópole.

O desejo de voltar para casa é hoje a redenção de muitos que aqui já fizeram sua parte.

Burn

no metrô

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Trinta, adoráveis trinta...

O termo "balzaquiana" surgiu da obra do escritor francês Honoré de Balzac. Em "A mulher de trinta anos", Júlia D´Àiglemont casa-se muito precocemente com um oficial do exército francês e sofre, durante muitos anos, as infelicidades do matrimônio. Júlia só encontrará a verdadeira felicidade e plenitude no amor após os trinta anos, quando acaba conhecendo um novo homem. A publicação que retratava, com mérito, uma parte da sociedade francesa da época, atingiu tamanha dimensão e importância no universo feminino que logo o sobrenome do autor foi relacionado às mulheres da faixa dos trinta.

Confesso que, ao ler Balzac, senti uma ponta de inveja. O homem entendia do riscado quando o assunto era mulher. Balzac tinha uma rara capacidade de escrever com realismo e precisão, mas ao mesmo tempo com fina sutileza, emoções e sentimentos decorridos de uma demoiselle. Se você, minha amiga, que está chegando, já chegou ou já passou das três décadas de vida, e acredita que, em pleno século XXI, nós homens não temos mais salvação, lhe convido a dar uma olhadinha na obra de Balzac. Se a situação está complicada hoje, imagina então no século XIX.

O livro fez-me refletir sobre certas coisas. Não sou o Arnaldo Jabor, mas vou me arriscar a fazer, também, algumas considerações sobre este adorável tipo de mulher. Vamos esquecer por um momento as mulheres na casa dos vinte e poucos anos. Elas não entrarão neste campo de discussão por alguns motivos. À flor da idade, lindas e cheias de graça, as coisas lhes parecem relativamente mais simples. Entretanto ainda não estão devidamente preparadas. Falta-lhes labuta, vivência, experiência. A maturidade chega mesmo na casa dos trinta. É nesse ponto que a mulher se vê segura e firme em seus propósitos.

A fase dos descobrimentos, das primeiras impressões, ficou para trás. As balzaquianas não querem viver um amor para a vida inteira; querem viver um amor que dure apenas o tempo que for necessário à sua felicidade. Não se apegam a malemolências, a charminhos ou beicinhos. Sabem o querem, quando querem e, principalmente, onde querem. O homem se sente pego de surpresa. Hoje em dia, não basta ser apenas um macho standard; tem que vir com algum pacote plus. E isso, tenha certeza, não fica necessariamente relacionado à sua conta no banco ou à marca do seu carro.

A balzaquiana gosta de homem-homem. Homem-pavão ela deixa no zoológico.

Enfim, o que mais me impressiona nas balzaquianas é a sua enorme capacidade de gestão da vida. São donas do próprio caminho, não têm medo de enveredar-se pelos lados mais sinuosos. Se o vento está mais favorável para este ou para aquele lado, não ficam esperando a banda passar: seguem em frente. Não aguardam propostas, elas próprias as fazem; não são sinceras comigo ou contigo, são com elas mesmas. Se esperar franqueza de uma balzaquiana, ô dó, não espere. Franco é o seu amigo, aquele do chope de sexta. A balzaquiana é franca com aquilo que tão somente lhe interessa.

Se isso incluir você, meu amigo, ótimo. Senão, vá tomar um chope.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Conto de macho

Grande sujeito o Freitas. Colega inexpugnável. O melhor digitador do escritório. Um devorador implacável de filmes antigos e pasteizinhos de queijo. Morava próximo do centro, dividindo o apartamento com seus dois jabutis de estimação. Gostava de animais, o Freitas. Sabe como é, depois dos trinta a gente começa a olhar as coisas com outro ângulo. Há quem achasse aqueles dois jabutis andando pelo apartamento algo um tanto exótico. Já o Freitas não ligava.

Conversava sobre quase tudo: política, carros, futebol, a nova do Simão, a última do Veríssimo. Ah, o Freitas. Somente num assunto o Freitas derrapava: mulher. Não que não gostasse da coisa; o problema era que o Freitas havia tido umas experiências meio desagradáveis nesse campo.

Não entendia direito as mulheres. Achava que algo estava errado com elas. Há uns meses começou a sair com uma delgada psicóloga, faixa dos trinta, boa de papo que só vendo. Para o Freitas, que já estava beirando os trinta e cinco, era um senhor partido, daqueles de pegar na mão, estufar o peito e correr pro abraço. Entretanto, ela tinha três qualidades temerosas: era independente, bem sucedida e bem resolvida.

Não que para o Freitas isso fosse uma surpresa, já ouvia falar dos novos clamores femininos fazia tempo. Só não esperava ter uma assim na frente. Fora pego de surpresa. Não havia se preparado para uma mulher daquelas. Uma cabeça genial acompanhada de um sorriso embasbacante e o par de pernas mais estupendo que já tinha visto.

O Freitas descobria que a tal “revolução feminina” não se baseava mais em pílulas, mini saias ou biquínis asa delta. De repente se viu diante de uma pessoa incrivelmente segura de si, sem débitos nem créditos com ninguém. “Aquilo não, já era demais”, pensava.

Estava incomodado. E impotente. Os amigos começaram a estranhar: estaria o Freitas sofrendo por uma mulher? Pobre Freitas, apanhando dos novos tempos. Ela ainda, irrefutável, deixava bem claro: detestava jabutis.

A coisa não demorou a acabar. A psicóloga se foi, num tour de dois meses pela África. Ao Freitas, restou amargar os desvarios do fim de namoro como todo bom macho: trancado no apartamento, na companhia de uma garrafa de uísque, dois jabutis e uma penca de discos do Osvaldo Montenegro.

Carolina

Decisões para ela sempre foram difíceis. Pequenas ou grandes escolhas lhe suavam a testa. Na infância tinha sérias dúvidas entre o picolé sabor abacaxi ou groselha; na adolescência, ficava por horas e horas entre o bom e velho sapato fechado ou o incendiário salto alto; um pouco depois, por volta dos dezoito, passou algumas noites pensando na faculdade que iria escolher pra vida. Não que fosse alguém sem eira nem beira; apenas não sabia lidar direito com tomadas de decisões.

Entre picolés, sapatos e os anos da faculdade, chegou aos quase-trinta sem namorado, “encalhada”, como diziam as amigas mais chegadas, e as menos também. Lembrava-se de sua mãe: “é muito indecisa, menina! Imagine quando casar!”

Casar? Não, a mãe só podia estar brincando com uma dose de sadismo cáustico. Quantas amigas, colegas do trabalho, todas, sem exceção, naquela corrida contra o tempo, esperando pelo tão sonhado príncipe, ou até, caso ele não surgisse, que fosse ao menos um plebeu com potencial.

Às vezes pensava no que seria o casamento. Um contrato conjugal de fidelidade, com termos e condições pré-fixadas? Ou um comercial de margarina, eterno enquanto durasse? Cautelosa, mantinha-se alheia a estas celeumas. Algumas vezes, escutava algumas histórias.

Numa delas, ficou sabendo que a quase-assistente da direção havia encontrado seu príncipe. Com direito a cavalo branco e tudo. Logo em seguida, aos prantos na sala de fotocópias, revelou que passados alguns meses de convivência num apêzinho quarto-sala, descobriu que o príncipe havia se transformado num acomodado sapo. Ele partira, deixando o cavalo branco, ou melhor, aquele pangaré, instalado no apartamento, com os excrementos espalhados pelo tapete da sala.

Diante dessas e outras ululantes histórias, tomou pela primeira vez uma firme decisão. Não se preocuparia com assuntos matrimoniais. Deixaria se levar pelas indas e vindas, e que o destino, aquele gozador, se encarregasse do resto. Passaria pelos quase-trinta e chegaria aos quase-quarenta se fosse preciso sem esquentar a cabeça com príncipes, cavalos e outras balelices do gênero.

Não iria embarcar na onda do matrimônio por atacado, se é que sabia direito o que isso queria dizer. Sua mãe, nessas horas, já perdia as esperanças. “Também, já viu aqueles sapatos? Estão horríveis!” desabafava.

Adorava cafés. Nas noites de terça ficava por horas numa cafeteria ao lado de casa, sentada num banquinho à meia luz, invariavelmente na companhia de um livro. Apareceu por lá numa noite de quinta, coisa que não tinha muito hábito. Trazia um livro de Neruda. Sentou-se no lugar costumeiro, e entre um latte e um irish coffee (maldita indecisão!) pediu o invariável expresso.

Notou a frente um fortuito sorriso. Na sua direção. Usava óculos retos, quase-caindo no nariz e lia Residencia en la tierra. Era um pouco mais alto que ela, tinha cabelos quase-pretos, quase-brancos. Usava sapatos marrons e tinha por volta de trinta e oito. O sorriso ainda estava lá, teimoso. Sentiu o suor escorrer na testa.

Por um instante hesitou, mas retribuiu o sorriso.

Estão juntos até hoje. Trocou o nome de solteira e até os sapatos.