quarta-feira, 15 de junho de 2011

Ano após ano, só no meu cotidiano

"FOSSA" (Fabrício Carpinejar)
Faço amizade comigo
para tomar uma cerveja.

Entro no meu apartamento. Cheiro de dia cheio. O ar ali aprisionado durante as horas do dia guarda meus registros particulares. O tapete molhado, o pó sobre a TV, o lixo da cozinha, o sabão sobre a pilha de roupas. Não guardo evidências, apenas micro-provas estáticas, ineptas frente ao relógio, frente aos carros passando lá fora, frenéticos.

Tiro os sapatos, as meias, as calças. Tiro o cansaço. Dispo-me das preocupações ordinárias, abro os dedos dos pés enclausurados. Já é noite, o chão está frio, as paredes estão frias. Minha cabeça arrefece-se.

Pego a garrafa e sorvo-me um gole. O gosto amargo desce pela minha garganta limpando a poeira da rua, diluindo a merda englida e não-digerida, assim como a merda criada e não dita. Olhos abertos, minha janela um cinema mudo de cenas privadas, de ruas pintadas de laranja-escuro e estátuas mortas. Pela rua, andam meninos. Natimortos.

Outro gole. A saliva torna-se mais doce. Casa em silêncio. Testemunha de mim mesmo, apenas eu mesmo, emoldurado nos retratos, fotografado nos documentos, presente nos registros das cadernetas. Sim, é ele mesmo, vejam só. Meu nome escrito, passado à limpo, revisitado por meus juízos. Recolhido a mais um número, números corridos num código qualquer.

Mais um gole. Mais um menino passa pela rua. Pés descalços. Um carro passa em alta velocidade.

BAM!

Pés pelos ares.Só mais um número.

Dentro do meu apartamento jogo a garrafa contra a parede. TIM-TIM.