quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Um cafezinho com Michel Teló, Adorno e Horkheimer

Artigo publicado no jornal eletrônico Brasil 247

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Um cafezinho com Michel Teló, Adorno e Horkheimer

A presença do cantor Michel Teló na capa da revista Época desta semana gerou polêmica. Com o sugestivo título “Ele ainda vai te pegar”, a matéria, de doze páginas, coloca o cantor como representante da cultura popular no Brasil, sintetizada pela nova onda da música sertaneja que desde o ano 2000 toma novas formas.
Batizado de “sertanejo universitário”, o estilo musical é febre em todo o país. Aos mais desavisados, é bom lembrar que ele passa longe daquele celebrizado por duplas como Tião Carreiro e Pardinho ou Zilo e Zalo. Com roupas moderninhas, ele também está a quilômetros de distância das calças agarradas e do cinturão “prato de sopa”, lançados por Zezé di Camargo e Luciano no jurássico início dos anos 90.
Michel Teló não apareceu na Época à toa. É dele a música “Ai, se eu te pego”, que virou febre não apenas no Brasil, mas em boa parte da Europa. Com cerca de 100 milhões de visualizações no YouTube, a música foi tema de bailinho, segundo relatos da mídia, até no rígido exército israelense. Talvez em momento mais descontraído e menos preocupada em seus eternos confrontos com palestinos, uma tropa deu o ar da graça com passinhos desajustados e fuzis na mão.
Tanto sucesso não vem só com louros. A revista nem esquentava o lugar nas bancas de jornal quando internautas já expressavam seus protestos em blogs e redes sociais. Ao verem os bondes da opinião e do lugar comuns, muitos tratavam logo de embarcar e tomar seus lugares ao lado da janelinha, onde podiam acenar à vontade, com argumentações variadas sobre “o caos cultural”, “a pobreza musical” ou ainda “a vergonha alheia do país”.
Todas claro, estritamente abalizadas, cheias daquelas afetações eruditas dos cânones e arremedos da MPB pós anos 60.
Não se trata de discutir se “Ai, se eu te pego” é boa ou não. Se derrapa ou acerta na métrica, na prosa ou no verso. Michel Teló será perpetuado ou irá durar no máximo dois verões, como o Parangolé (aquele, do “Rebolation”)? Puro exercício de metafísica. Também não é recomendável filosofar se a música ficará marcada como célebre canção ao lado de “Garota de Ipanema”, tocada em elevadores do Rio de Janeiro à Berlim, ou se aguentará até a mais nova melhor música de todos os tempos da próxima semana.
Trata-se, pois sim, de reconhecer que ela é um sucesso e que, de uma forma ou de outra, pertence à mesma indústria cultural (aquela, do Adorno e do Horkheimer) na qual está inserida boa parte da música do século XX e praticamente toda a música do século XXI. Salvo raras exceções e artistas menos conhecidos e mais independentes, Michel Teló, no YouTube, ocupa o mesmo universo de outros grupos musicais, do rap do Racionais ao rock do Led Zeppelin.
O que parece doer em uma parcela de brasileiros mais esclarecidos é aquela boa e velha “invejinha”.
Se no passado descíamos o sarrafo em muitas coisas que vinham de fora (e falamos aqui de música, cinema, TV e produtos de Ciudad de Leste), hoje tomamos o caminho inverso. Pra muita gente, é mais fácil engolir uma Lady Gaga ou uma Britney Spears, com aquele charminho besta, sem borogodó, do que o pobre Michel Teló, que hoje está na boca do povão.
Certamente, Michel Teló não vai me pegar. E talvez nem você, amigo leitor. Mas vale o recado. Por mais apurados ou sofisticados que gostos possam parecer, muita gente que hoje gosta de ostentar tais títulos já dançou a “Conga La Conga” da Gretchen, se adocicou na lambada do Beto Barbosa ou já pendurou na parede, em adoração quase sacerdotal, pôsteres com cabeludos vestindo calças de Lycra fluorescentes e jaquetas de couro.
Adorno e Horkheimer tinham razão.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Ano após ano, só no meu cotidiano

"FOSSA" (Fabrício Carpinejar)
Faço amizade comigo
para tomar uma cerveja.

Entro no meu apartamento. Cheiro de dia cheio. O ar ali aprisionado durante as horas do dia guarda meus registros particulares. O tapete molhado, o pó sobre a TV, o lixo da cozinha, o sabão sobre a pilha de roupas. Não guardo evidências, apenas micro-provas estáticas, ineptas frente ao relógio, frente aos carros passando lá fora, frenéticos.

Tiro os sapatos, as meias, as calças. Tiro o cansaço. Dispo-me das preocupações ordinárias, abro os dedos dos pés enclausurados. Já é noite, o chão está frio, as paredes estão frias. Minha cabeça arrefece-se.

Pego a garrafa e sorvo-me um gole. O gosto amargo desce pela minha garganta limpando a poeira da rua, diluindo a merda englida e não-digerida, assim como a merda criada e não dita. Olhos abertos, minha janela um cinema mudo de cenas privadas, de ruas pintadas de laranja-escuro e estátuas mortas. Pela rua, andam meninos. Natimortos.

Outro gole. A saliva torna-se mais doce. Casa em silêncio. Testemunha de mim mesmo, apenas eu mesmo, emoldurado nos retratos, fotografado nos documentos, presente nos registros das cadernetas. Sim, é ele mesmo, vejam só. Meu nome escrito, passado à limpo, revisitado por meus juízos. Recolhido a mais um número, números corridos num código qualquer.

Mais um gole. Mais um menino passa pela rua. Pés descalços. Um carro passa em alta velocidade.

BAM!

Pés pelos ares.Só mais um número.

Dentro do meu apartamento jogo a garrafa contra a parede. TIM-TIM.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Uma crônica para Dona Gilda

Durante um tempo morei com Dona Gilda. O anúncio do aluguel estava lá, a precinho de ocasião, e resolvi sair do aperto de um sobrado de dois dormitórios, que dividia com outras sete pessoas, para me aboletar num quartinho de empregada de um metro e poucos por um metro e poucos, num pequeno apartamento próximo à Estação da Luz. Não me recordo muito bem agora, mas acho que se o Nelson Ned resolvesse passar uma temporada por lá, iria reclamar que lhe faltava espaço para guardar as alpargatas.


Recordo-me bem é da Dona Gilda. Sua idade até hoje me parece algo indecifrável, tão indecifrável quanto aquelas estranhas sobrancelhas arqueadas, rigidamente dispostas sobre os dois pequenos olhos azuis. Nos seus autos depois revelados, constava que havia chego à capital paulista ainda nos anos 60, talvez quando Caetano, Gil e outros velhos baianos saracoteavam pelo cruzamento da Ipiranga com a São João.

Sempre tivera o hábito de alugar quartos para rapazes e, durante minha estadia, me colocava sob um tratamento quase militar, que faria um general da antiga Esparta corar de inveja. Apesar da rigidez protocolar em seu lar, Dona Gilda era amável. Servia-me um cafezinho toda a manhã, enquanto ouvia canções religiosas vestida num pijamão de flanela roxo e chinelas felpudas nos pés.

Ah, que saudades da Dona Gilda.

Como boa aposentada pelo INPS, Dona Gilda gostava de falar sobre três assuntos: o preço dos remédios, o preço dos tomates e o preço dos alugueis. Às vezes, mudava a retórica: falava da quantidade de remédios que era obrigada a tomar, da quantidade de doenças que poderíamos pegar e da quantidade de pessoas na rua que poderiam nos assaltar. Se Dona Gilda tivesse nascido na antiga Grécia, não ia ter pra ninguém na dialética.

Dona Gilda estava na ocupação errada. Deveria ser Ministra da Saúde ou do Bem-Estar Social. Os canadenses e os franceses iriam morrer de inveja. Ainda bem que Dona Gilda não falava francês. Uma pena que Dona Gilda não falava grego.

Dona Gilda tinha o sono leve. Portas, janelas e pacotes de biscoito deviam ser abertos com discrição. Mas nada era comparável à descarga. Maldita descarga. Sua cartilha era clara: a descarga deveria ser apertada com - ui! - carinho e delicadeza, para não promover estardalhaços desnecessários no meio da noite. Mas, no sagrado momento de encontro ao vaso sanitário, quando nossos anseios mais profundos eram libertos da clausura do expediente diário, a descarga se mostrava lá, desafiadora. E quanto aos nossos anseios, apesar de dispostos a tomar o curso dos acontecimentos e desaparecerem esgoto abaixo, ficavam sempre à mercê dos caprichos da barulhosa. Certa noite tive a impressão de nela ver estampado o rosto de Dona Gilda. Aquelas sobrancelhas arqueadas não me deixavam dúvida.

Mas como tudo passa e tudo passará, minha estadia com Dona Gilda terminou logo. Faltava-me espaço não só para as alpargatas, como também para outras mil tranqueiras que costumo guardar. Hoje ocupo um quarto mais espaçoso. E com descargas liberadas toda a noite.

Mesmo assim, ah, que saudades da Dona Gilda.

sábado, 22 de maio de 2010

Abobrinhas

A cabeçadurice é contagiosa.
Metro_SP

terça-feira, 18 de maio de 2010

Realidades

Moro atualmente na capital paulista, vizinho à Estação da Luz, na região da Cracolândia. Do décimo andar do prédio onde moro, posso ter tristes impressões sobre a fragilidade humana. Por aquelas ruas, dezenas, talvez centenas de pessoas, travestidas de farrapos humanos amparados pelo desespero, amontoam-se nas esquinas alaranjadas. A pedra aquecida, tragada aos poucos, parece-lhes injetar um sopro de vida mórbida.

Os olhos vazios, petrificados, dão-lhes a aparência de zumbis.

Não era o que eu via há um ano. Sob o céu azul e a vida na cidade do interior, outro rapaz tentava dar sentido ao seu caminho. Por mais que parecesse uma ideia desafiadora, tomar a decisão de abandonar o aconchego materno era uma tarefa penosa. Entretanto, mais cedo ou mais tarde chegaria a hora. E cá estou. De certa forma, acredito que todos deveriam ter, ao menos uma vez na vida, a oportunidade de saírem da cadeira do comodismo e terem um choque com a realidade.

Realidade em certos momentos ríspida, mas que em outros nos promove, com profunda sinceridade, boas histórias.

Conheci Orlando. Pernambucano de boa prosa radicado há 25 anos na cidade de São Paulo. Balconista de bar. Ao dizer a ele que aquela tarde estava “um calor da bexiga”, quis saber de onde eu havia tirado tal expressão. Tentei lhe esboçar algumas memórias, mas minha pequena e medíocre história não se comparava à dele.

Disse-me que quando chegara à capital paulista, trazia o sonho de todos que por aqui desembarcavam: ganhar a vida. Terra do trabalho, do dinheiro e das vicissitudes, São Paulo era o Eldorado prometido. Depois de três dias e duas noites num ônibus, vindo de Trucunhaém, no interior pernambucano, ancorava a vida na capital paulista.

Soube depois que Trucunhaém era movida pela cerâmica e pela cana de açúcar. Talvez Orlando não levasse jeito para modelar argila. Talvez não gostasse também da paisagem monótona do canavial. Com dezessete anos nas costas e um amigo já radicado na Xangrilá bandeirante, arredou o pé. Como ele mesmo me disse, “achava que São Paulo era uma espécie de ilusão”.

Os tempos passaram, e vinte e cinco anos depois, casado e com quatro filhos, Orlando não tem mais vontade de voltar. Mas apontou que algo muda atualmente por esses lados. Os migrantes estão voltando para sua terra. As condições de vida na região melhoraram; não há mais aqui o romântico encanto, a sedutora atração para almas aventureiras.

Ainda existe a São Paulo cinematográfica, dos campos, espaços e clichês. Ao sertanejo da Paraíba, de Pernambuco, da Bahia e do Brasil, Patativa do Assaré ainda declama seus versos, embalando a luta de um povo que alicerça, com concreto, suor e saudade, o desígnio de uma metrópole.

O desejo de voltar para casa é hoje a redenção de muitos que aqui já fizeram sua parte.